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sábado, 23 de setembro de 2006

Angola, Uma Pérola Atirada Aos Porcos

Temos levado a nossa breve passagem por este mundo atormentados por um permanente conflito entre o promissor paraíso que as enormes potencialidades deste nosso grande, rico e belo País nos proporcionariam e o real inferno gerado pelo nosso péssimo e desastroso desempenho na condução do nosso destino colectivo e na gestão dos nossos recursos humanos e naturais. Quero, assim, partilhar convosco um texto bíblico que ilustra, de forma eloquente, esse hediondo conflito que tem ensombrando a nossa peregrinação terrena. O dito texto, extraído do livro do Deuteronômio, diz o seguinte: “O Senhor teu Deus, vai conduzir-te a uma terra afortunada, uma terra cheia de torrentes de água, de fontes e de águas que se derramam pelos vales e pelos montes. Uma terra que produz trigo, cevada, uvas, figos, romãs, azeitonas e mel. Uma terra onde comerás pão com abundância, nada te faltará: onde as pedras são de ferro e de cujas montanhas extrairás o cobre. Usufruirás todos estes bens e ficarás saciado. Darás, então, graças ao Senhor, teu Deus, pela boa terra que te deu”. (DEUTERONÓMIO 8, 7-10).

Somos, portanto, filhos de um país abençoado. Devíamos, por isso, usufruir, abundantemente, dos nossos vastos recursos naturais, levar uma vida digna e dar graças ao Senhor pela boa terra que nos deu. Mas nada disso tem acontecido. Pelo contrário, regredimos no tempo, definhamos como Nação, estagnamos como País e mergulhamos num abismo de privações e provações. É por esta irónica, contraditória e dolorosa realidade que os «ocidentais» vêem o nosso belo, rico e promissor País como uma preciosa pérola atirada aos porcos.

A expressão «atirar pérolas aos porcos» significa dar ou dizer coisas finas e preciosas a quem não é capaz de as valorizar ou entender. Ela ficou celebrizada a partir da seguinte parábola de Jesus: “Não deis as coisas santas aos cães nem lanceis as vossas pérolas aos porcos, para não acontecer que as pisem aos pés” (MATEUS 7, 6). No tempo de Cristo, as pérolas eram consideradas preciosidades de altíssimo valor. E os porcos nunca saberiam apreciar o real valor de uma pérola.

Desde os primeiros contactos, ocorridos em finais do século XV, que os «ocidentais» não nos levam a sério. A nossa cor carregada de melanina, o nosso nariz achatado, os nossos lábios grossos, a nossa testa escapada e o nosso cabelo em carapinha fugiam aos padrões físicos por eles idealizados. As nossas vivências culturais, políticas e religiosas contrastavam com aquelas de que eram portadores e que resultavam da aglutinação das civilizações greco-romanas e das tradições judaico-cristãs. Esta realidade despertou neles um sentimento de absoluta superioridade, passando o afro a ser visto como um precioso objecto de lucro e um sub-humano do ponto de vista intelectual, moral, cultural e religioso. Este estigma marcou, de forma trágica, o destino das relações inter raciais e, embora mais camuflado, perdura até hoje.

Perfeitamente cientes das enormes potencialidades do Continente Negro e absolutamente convictos da inferioridade dos afros, os «ocidentais» não levaram a sério as nossas reivindicações independentistas. Por exemplo, os defensores do colonialismo e da perpetuação da presença portuguesa em Angola apregoavam que «os pretos não estavam preparados para assumir o seu próprio destino. Dado que não tinham capacidades de organizar um trabalho e de planificar uma acção. Não possuíam nem originalidade, nem inteligência, nem cultura suficientes para se bastarem a si mesmos e não estavam aptos a dirigir um país por falta de preparação e maturidade político-administrativa».

E, por mais dolorosa que ela seja, a grande verdade é que não temos sido sérios na condução do nosso destino colectivo e na gestão dos nossos recursos humanos e naturais. Por isso, eles continuam a não nos levarem a sério, condoendo-se da nossa imerecida desgraça e rindo-se dos bizarros comportamentos de alguns endinheirados e da hilariante colecção de asneiras dos nossos dirigentes. Vejamos: mal foi proclamada a tão reivindicada independência, apressamos em barricar-nos num e noutro lado de um inglório conflito e limitamo-nos a destruir e a degradar, de forma insensata, tudo aquilo que os colonos ergueram: pessoas; estruturas económicas, administrativas e financeiras; cidades e vilas; estradas; pontes; etc., etc.

Os mais poderosos de todos nós mantêm, há 30 anos, uma envernizada estrutura estadual e governativa, destinada a vender às «comunidades evoluídas», e a qualquer preço, a falsa imagem de negros civilizados, de políticos sérios, dirigentes organizados e governantes responsáveis. Julgam eles, erradamente, que para sermos levados a sério basta trajarmos de fato e gravata, copiarmos os nomes de algumas instituições das comunidades evoluídas (Governo, Parlamento, Tribunal de Contas, Alta Autoridade para a Corrupção, Provedor de Justiça, etc) e adoptarmos alguns conceitos das sociedades organizadas (Democracia, Estado de Direito, Desenvolvimento Sustentável, Economia de Mercado, etc).

Não. Para combatermos o velho estigma rácico-cultural, os mais poderosos de todos nós precisam de fazer muito mais. Porque o Século XX deu um novo sentido às concepções do poder e aos métodos de governação. Sobretudo a partir do final da II Guerra Mundial, os dirigentes das comunidades seriamente organizadas serviram-se do poder político para execução de certos programas ou projectos, para porem em prática determinadas ideias, fazerem respeitar consagrados valores e defenderem os legítimos interesses da comunidade. Mas, nós paramos no tempo. E tal como faziam os «ocidentais» há 400 anos, continuamos a pessoalizar o poder, a usá-lo a título perpétuo e a, simplesmente, desfrutar do sentimento de prestígio que ele confere. Durante os últimos 60 anos, os governos das comunidades seriamente organizadas esforçaram-se por usar todos os recursos humanos e naturais disponíveis em diversas infra-estruturas e em sérios projectos socio-económicos com vista a melhorar as condições de vida dos cidadãos em todos os sentidos. Mas, nós paramos no tempo e, sem pudores, limitamo-nos a degradar os recursos humanos disponíveis e a usar em proveito próprio os abundantes lucros das nossas riquezas.

E os «ocidentais», que nunca nos levaram a sério e sempre acharam que as nossas riquezas eram valorosas pérolas atiradas a uns porcos que nada percebiam de administração e gestão dos recursos disponíveis, não cessam de obter astronómicas vantagens à custa da hilariante e vergonhosa conduta dos nossos dirigentes. Vejamos: saem sempre a ganhar nos chamados «acordos de cooperação». Compram, a preço acessível, o nosso incontrolado crude e o «governo» gasta fortunas na importação dos derivados do nosso próprio petróleo. Levam, de graça, os vastos recursos marinhos do país e o «governo» compra-lhes, a preço de ouro, o nosso próprio peixe, o nosso próprio marisco e os derivados da nossa riqueza marítima. Levam, quase de borla, a nossa madeira de excelente qualidade e o «governo» desembolsa milhões de dólares na importação dos derivados da nossa própria madeira. Por sermos uma cambada de estúpidos governados por corruptos sem escrúpulos, triplicam os custos das obras e das importações, «dão» empréstimos com juros insuportáveis, mandam para o nosso país os resíduos tóxicos, vendem-nos medicamentos e alimentos de qualidade duvidosa, etc., etc.

Os mais endinheirados de todos nós muito têm contribuído no agravamento da nossa má imagem. Por acharem que já não são tão «pobres» e «atrasados» como o resto dos angolanos, esforçam-se por mostrar aos «ocidentais» que podem tanto como eles. Por isso, quando vão ao estrangeiro, esbanjam dinheiro em escandalosas compras e em extravagâncias que fazem corar os mais ricos dos «evoluidos». E para mostrarem aos seus ilustres convidados que em Angola não há tanta fome e miséria como se diz no «Ocidente», hospedam-nos nas mais impressionantes vivendas e nos melhores hotéis. Proporcionam-lhes os mais requintados banquetes oficiais e as mais luxuosas festas privadas. Mas tudo isso acaba por se revelar um esforço inglório na vã tentativa de mudarem a preconceituosa opinião dos «evoluídos». É que, antes de serem introduzidos numa Angola apenas ao alcance de alguns abençoados, os ilustres convidados, durante o percurso que vai do aeroporto aos hotéis ou vivendas de luxo, têm tempo suficiente para tristemente contemplarem a vergonhosa degradação urbana das nossas cidades, a imensa miséria e o imerecido sofrimento da esmagadora maioria dos angolanos. E regressam deveras impressionados. Não com a luxuosa e principesca estadia, mas com a gritante injustiça sócio-económica que impera entre nós. «Eles na boa vida e o povo na miséria. Que tristeza!».

Assim, e por causa das vergonhosas extravagâncias dos mais endinheirados da nossa sociedade, do mau desempenho dos gestores dos nossos recursos naturais e das desastrosas condutas dos responsáveis pelo nosso destino colectivo, tornamo-nos alvos de chacotas nas grandes arenas internacionais e somos os temas favoritos das humilhantes anedotas contadas nos fóruns privados dos «ocidentais» que vivem entre nós, negoceiam com os nossos dirigentes, colaboram com as instituições da nossa sociedade e visitam o nosso intrigante país.

E enquanto continuarmos a passar imagens de desorganização, corrupção e incompetência. Enquanto continuarmos a ser desastrosos na gestão dos nossos abundantes recursos naturais. Enquanto aqueles que nos dirigem não promoverem uma elevação colectiva dos angolanos e teimarem em fazer do nosso País um vergonhoso lugar de indigência e degradação, Angola dificilmente deixará de ser aquilo que tem sido aos olhos dos «ocidentais»: uma preciosa pérola atirada a uma cambada de porcos, absolutamente incapazes de organizar um trabalho, de planificar uma acção, de assumir o seu próprio destino e de se bastarem a si mesmos.

JOSÉ MARIA HUAMBO