BlogBlogs.Com.Br

quinta-feira, 8 de junho de 2006

Os Donos da Bola

Há, entre nós, uma generalizada desilusão motivada pela forma como a oposição política, as principais instituições civis e religiosas, as lideranças sindicais e alguns intelectuais proeminentes se submetem aos jogos, caprichos e desmandos do núcleo duro que detém o poder e domina a sociedade angolana.

Este triste fenómeno fez-me recuar no tempo e rever uma das mais sinistras figuras da minha memorável infância: o dono da bola. Aqueles que, como eu, passaram grande parte da infância a jogar a bola, lembram-se, com certeza, que durante a década de oitenta eram poucos os que tinham um esférico a sério! A maior parte de nós passava longas horas a jogar com bolas de trapos ou de meias. E a imensa criatividade dos miúdos do meu tempo proporcionou-nos o prazer de jogar futebol com bolas de vários tipos e feitios, sendo as mais «sofisticadas», aquelas que o Narciso fazia: envolvia um monte de plásticos em peúgas militares, até formarem um grande esférico. Depois cobria-o com restos de colchão de esponja, para dar-lhe elasticidade. Por fim, envolvia o esférico esponjado num saco plástico, entrelaçando-o com cordas de barbante que lhe dava o aspecto atractivo.

Claro que, enquanto incondicionais amantes do futebol, o nosso ardente desejo e a nossa mais profunda ambição era jogar com um esférico a sério, quer fosse de borracha ou de «catchu». Mas, naquele tempo, as ditas bolas eram um raro bem, apenas ao alcance dos clubes a sério, das equipas dos caçulinhas e dos filhos dos «pequenos burgueses». É neste contexto que os poucos proprietários de um esférico a sério surgiram como figuras marcantes da nossa infância. E de todas essas figuras com as quais me deparei, uma delas destaca-se como paradigma perfeito da confrangedora situação vivida pelas cada vez mais passivas figuras da oposição política, da intelectualidade nacional e das lideranças sindicais, sociais e eclesiásticas.

Por razões pessoais, vou omitir o seu verdadeiro nome e chamar-lhe Jota-Jota. Apesar de ser um bom miúdo, Jota-Jota nunca foi um daqueles jogadores indispensáveis, quer nas equipas da nossa rua, quer nos grupos que actuavam nos pelados das escolas que circundavam o nosso bairro. Na maior parte das vezes, ele só entrava em campo nos dias em que havia pouco pessoal. Mas tudo mudou a seu favor quando uma das tias vinda de Luanda entregou-lhe uma prenda carinhosamente enviada pelo padrinho que vivia em Portugal: uma novinha bola de «catchu» Mikasa e um equipamento completo da Adidas, daqueles com fato olímpico, calções, camisola, meias e chuteiras. Assim, por ser dono da mais cobiçada bola do meu tempo, Jota-Jota passou a ser o miúdo mais adulado e o jogador mais procurado da minha rua.

Cansados de jogar com as «sofisticadas» bolas do Narciso e ansiosos por colocar os nossos pés descalços na bendita Mikasa preta e branca, pressionamos o novo dono a marcar um jogo de estreia. Mas só no dia do desafio nos apercebemos que o Jota-Jota, como qualquer dono da bola que se preze, iria usar a Mikasa como instrumento de poder e de influência. Os caprichos e desmandos que um esférico de «catchu» lhe conferia vieram logo ao de cima na altura do «bota-sapato». Para quem não sabe ou não se lembra, o «bota-sapato» era um «democrático» mecanismo que determinava a escolha das equipas. Dois jogadores ofereciam-se ou eram escolhidos para seleccionarem os elementos das suas equipas. Marcava-se um ponto de referência. Os dois jogadores davam a mão e, partindo desse ponto, recuavam até uma certa distância, a partir da qual começavam a contar os passos em direcção ao ponto de referência. Por cada passo dado um dizia «bota» e outro respondia «sapato». Aquele que alcançasse primeiro o ponto de referência tinha direito à primeira escolha.

Fui escolhido para apadrinhar o primeiro «bota-sapato» do dono da bola. Durante o percurso em direcção ao ponto de referência, Jota-Jota deu dois passos a mais e ganhou o direito à primeira opção. Todos vimos a monumental batota. Mas, levados pela ânsia de jogar com uma bola a sério, acabamos por desculpar a fraude. Jota-Jota, ciente do ascendente que passou a exercer sobre nós, estava decidido a ficar com os melhores em campo. E esta pretensão ficou clara quando anulou as minhas primeiras escolhas que tinham recaído sobre o Nato (Bernardo) e o Enoque, que eram, respectivamente, o melhor guarda-redes e o mais temível avançado do nosso Bairro. Esta situação gerou uma longa discussão que só terminou quando o Jota-Jota decidiu ir para casa. Naquele tempo, levar a respectiva bola era o mais poderoso instrumento de chantagem que os donos gostavam de usar para fazerem vincar os seus desmandos e caprichos. Assim, vergados pela força da chantagem e determinados em não deixar escapar a rara oportunidade de jogar com uma Mikasa, acabamos por acatar a desonesta e arrogante imposição.

Depois dos desentendimentos iniciais, lá começou o jogo que se tornou recheado de controvérsias. A minha equipa marcava um golo. Os batoteiros do outro lado apressavam-se a invalidá-lo. Discussão. É golo... não é... é golo... não é... E lá vinha o Jota-Jota: «vou levar a bola!» E nós: «ta bem, pronto... não foi golo». Um jogador da minha equipa dá um encostão ao adversário na zona do meio campo. Jota-Jota pega na bola e decide assinalar... grande penalidade. Os ânimos exaltam-se. Perante a tenaz resistência dos adversários, o dono da Mikasa decide: «vou levar a bola!» E nós, preferindo engolir a fraude monumental a perder o jogo, lá acabamos por fazer-lhe a vontade: «ta bem, pronto... é penalti».

Apesar da batota dos adversários, chegamos a meio do jogo a ganhar por 6-3. O grande responsável pelo esmagador resultado chamava-se Bato (Bartolomeu). Este miúdo, escolhido a ultima da hora para reforçar a minha desfalcada equipa, revelou-se um grande e habilidoso jogador, um genuíno «brinca na areia» que destronou o temido Enoque e fez o Nato parecer um vulgar guarda-redes. Esse Bato protagonizou um incidente que mudou o curso do jogo.

Naquele tempo, era suprema humilhação um jogador permitir que o adversário conseguisse passar-lhe a bola por entre a s pernas (dar da «ova» ou das «cuecas»), driblar-lhe em sprint (levar na «colola») e fazer passar-lhe a bola por cima da cabeça (dar «cabrito» ou fazer «chapéu»). O habilidoso Bato, que se revelara um mestre da «colola» e que já tinha dado «das cuecas» de todos os adversários, cometeu a imperdoável heresia de dar duplo «cabrito» ao dono da bola. Desolado com a pesada derrota da sua equipa e sentindo-se humilhado pelo Bato, Jota-Jota pegou na preciosa Mikasa e, sem explicações, começou a abandonar o campo. Depois de suplicantes pedidos de desculpas do Bato e de longos minutos de uma autêntica batalha diplomática, lá conseguimos convencê-lo a esquecer o humilhante incidente e a regressar ao campo. Ciente da sua dominante posição, o dono da bola decidiu retomar a partida impondo duas grandes condições: o jogo recomeçava empatado a 6 golos e o Bato passava para equipa dele. De início, insurgimo-nos com veemência e indignação. Mas, depois, cedemos, acabando por tolerar as injustas condições.

É escusado dizer que a minha decapitada equipa sofreu um autêntico «massacre». Mas, o que valeu mesmo e constituiu para nós um supremo prazer foi o facto de aquela bola de «catchu» nos ter dado a possibilidade de encarnarmos os nossos ídolos e explanarmos todo o nosso futebol. E por felizes momentos deixamos de ser nós mesmos e passamos a ser Ndunguidi, Maluka, Sarmento, Jesus, Vata, Napoleão, Chico Diniz, Arsénio, Maradona, Rumenigge, Dasaev, Boniek, Paolo Rossi, Zico, Platini, etc.

Vivemos numa sociedade empobrecida, onde os mecanismos que possibilitam o justo acesso aos chamados «bens socialmente desejados» (habitação, alimentação, educação, saúde, emprego, etc.) continuam concentrados nas mãos do núcleo duro que detém o poder e domina a sociedade angolana. Assim, e cansados de jogar com as «sofisticadas» «bolas de trapos» que dispomos no quotidiano jogo pela sobrevivência, temos sido forçados a recorrer aos nossos «Jota-Jotas» para usufruirmos dos preciosos bens capazes de tornar menos pesado o duro fardo da vida.

E, para continuarmos a desfrutar de um «esférico» a sério, já sabemos o que não se deve fazer aos poderosos donos da bola: dar «cabrito» ao Presidente, nem pensar! E os «Batos» que ousaram fazê-lo, sofreram as devidas consequências. Os atrevidos que tentarem Levar na «colola» os Altos Dirigentes já sabem que correm o risco de levar um «carrinho» mortal ou uma daquelas entradas duras capazes de deixá-los gravemente lesionados. Dar das «cuecas» do «Governo» pode desencadear a perda da casa, do carro, dos dólares, das bolsas de estudo, da junta médica, dos subsídios do partido, dos negócios, dos privilégios e de outras regalias.

E, assim, no quotidiano jogo da realização pessoal e da sobrevivência socio-política, contestar os nossos «Jota-Jotas» transformou-se num risco que poucos se atrevem a correr. E usufruir das «bolas de catchu» proporcionadas pelo poderoso sistema transformou-se num deleitante prazer que ninguém deseja abdicar. Por isso, entre nós, tornou-se preferível suportar os caprichos e desmandos dos donos das preciosas «Mikasas» a jogar honestamente com as «bolas de trapos» da nossa empobrecida sociedade.

José Maria Huambo

4 comentários:

Upindi Pacatolo disse...

simplesmente magistral e divino. meu mano além de nos levar aos lindos anos da nossa infância, consegues trazer-nos aos tristes, pesados e difíceis anos da nossa juventude quiça velhice!!!
força e coragem nesta luta,
com admiração
Pacatolo

Sissimo, Sd® disse...

Sem palavras eu concordo

Unknown disse...

Pois é... por isso é que eu cada vez mais penso em sexo!
Aqui na banda não dá pra esquentar muito os miolos a pensar em dirigentes gatunos e povo miserável.
Tenho dito!

Unknown disse...

A analogia caiu como uma luva... este artigo deveria ser publicado num jornal de grande tiragem!

Um abraço,