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quinta-feira, 29 de junho de 2006

Angola no «Mundial» do Desenvolvimento

Vamos, na reflexão de hoje, analisar e repensar o triste desempenho de Angola numa das mais importantes competições da humanidade: o «Mundial» do Desenvolvimento. Nesta competição, o apuramento das «selecções» faz-se mediante as capacidades das «equipas» usarem todos os seus recursos e todas as suas potencialidades na criação de condições que contribuam para o bem-estar físico e espiritual de todos os seus «adeptos». Porque, seja quais forem as «selecções» dos seus corações, todos os «adeptos» deste mundo desejam ter boa vida, viver mais tempo, aumentarem os seus conhecimentos, participar activamente na vida das suas comunidades e usufruir da segurança das suas pessoas e dos seus bens.

O PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), a FIFA do desenvolvimento, dispõe das seguintes competições que avaliam e premeiam as «equipas» desta importante competição da humanidade:

Supertaça da Evolução: Fazem parte desta fase do «Mundial» as «equipas» que canalizaram, de forma brilhante, todos os seus recursos e potencialidades na valorização dos seus «adeptos» em todas as suas dimensões. Dominam a Supertaça as «selecções« da Noruega, Islândia, Suécia, Canadá, Suíça, Luxemburgo, Austrália, Dinamarca e Finlândia.

Liga dos Campeões: A maior parte das «equipas» desta milionária competição estavam completamente arruinadas depois da II Guerra Mundial. Mas, em poucas décadas, recuperaram de forma espectacular, tornado-se poderosas «selecções». Destacam-se nesta fase da «Copa» do Desenvolvimento, os EUA, o Japão, a Bélgica, França, Holanda, Alemanha, Itália, Inglaterra, Irlanda, Espanha, Áustria e Nova Zelândia.

Superliga do Desenvolvimento: As «equipas» desta fase do «Mundial» fizeram brilhantes esforços no sentido de promoverem o crescimento económico das suas comunidades e a valorização integral dos seus «adeptos». Mas, por várias razões, ainda persistem no seio dos seus «adeptos» pequenos focos de pobreza, desigualdade e exclusão social. Destacam-se nesta fase do «Mundial» as selecções de Israel, Portugal, Grécia, Singapura, Coreia do Sul, Chipre, Rep. Checa, Qatar e Emiratos Árabes Unidos.

Liga do Mau Crescimento: Muitas «equipas» desta fase do «Mundial» dispõem de vastos recursos humanos e naturais. Mas a gestão dos mesmos tem sido feita de forma desastrosa. E pior. Houve um gritante desajuste entre o crescimento económico e o desenvolvimento humano. Assim, enquanto multidões imensas de «adeptos» enfrentam privações de toda espécie, algumas «claques» vivem na opulência e na dissipação. Coexistem, assim, entre os «adeptos» das «equipas» desta competição, o luxo e a miséria. E as causas destas desigualdades podem ser de ordem política, económica, racial, cultural ou religiosa. Destacam-se nesta liga a Líbia, Rússia, Brasil, China, Venezuela, Tailândia, Turquia, África do Sul.

Liga dos Últimos: As «selecções» que competem nesta fase do «mundial» do Desenvolvimento fracassaram, por várias razões, na criação de condições que contribuam para o bem-estar físico e espiritual dos seus «torcedores». Por isso, a esmagadora maioria dos seus «adeptos», é incapaz de ter uma vida longa e saudável, de adquirir conhecimentos, de participar activamente na vida comunitária, de exercerem os seus direitos cívicos e políticos e de terem acesso aos recursos necessários para beneficiarem de um padrão de vida adequado. A nossa «selecção» faz parte desta competição, ocupando o 15º lugar entre as 32 «selecções» presentes nesta fase. O Madagáscar, a Suasilândia, os Camarões, O Lesoto e o Djibuti ocupam os cinco primeiros lugares da tabela classificativa.

Portanto, Angola, depois de ter sido uma das mais promissoras «selecções» deste planeta, apresenta-se hoje no vergonhoso grupo das «equipas» que incontestavelmente lideram os piores dados estatísticos do «Mundial» do Desenvolvimento. Quer isto dizer que estamos muito aquém do progresso económico e do desenvolvimento sustentável que tanto se fala. Estamos muito longe de ser a tal potência africana que tanto se propala. Porque nesta competição, a força e o poder de uma «selecção» não é determinado pelas riquezas existentes no mar, solo e subsolo. Não é mensurado pela cilindrada dos luxuosos carros que circulam nas suas principais cidades. Não é valorado pelo poderio bélico das suas forças armadas. Não é medido pelas caprichosas extravagâncias das suas elites.

Pior do que este triste cenário, é o facto de, ao longo destas décadas de raras «vitórias», alguns «empates» e muitas «goleadas», desenvolvermos o estranho hábito de atribuirmos exclusivamente às «equipas de arbitragem» a culpa pelo mau desempenho da nossa «selecção». E são muitos os «árbitros» que serviram de «bodes expiatórios»: «o colonialismo que cultivou o obscurantismo e a exploração do homem pelo homem»; «o imperialismo e seus lacaios»; «a cobiça de alguns países»; «os bandos de fantoches armados»; «a ingerência de alguns estados no assuntos internos de Angola»; «o regime comunista instaurado em Angola»; «a arrogância dos caudilhos»; «o regime totalitário de Luanda»; «o neocolonialismo russo-cubano»; «os profundos interesses das grandes potências mundiais», etc., etc.

A nossa selecção tem condições de fazer uma notável campanha no «Mundial» do Desenvolvimento. E não é utópico sonharmos brilhar na Liga dos Campeões ou conquistar a Supertaça da Evolução. Mas para materializarem este sonho e darem esta enorme alegria aos «adeptos» angolanos, os responsáveis da «federação», a «equipa técnica» e os «jogadores» terão de moldar uma grande «equipa» e por em marcha um gigantesco plano de trabalho que seja capaz de, em poucas décadas, tirar a nossa promissora «selecção» das humilhante Liga dos Últimos, superar a Liga do mau Crescimento e ocupar os lugares cimeiros da Superliga do Desenvolvimento.

E para conseguirmos realizar esta espectacular e honrosa subida, a realização pessoal e social dos «adeptos» angolanos terá de ser o fim único e absoluto da actuação de todos quantos integram os trabalhos da «selecção» de Angola. Porque, como bem disse João Paulo II, “a pessoa humana, na sua dimensão pessoal e comunitária, no que ela é e no seu desenvolvimento, deve ser o ponto de referência para a organização da sociedade e da economia, para a elaboração das leis, para o ordenamento das relações sociais, para a distribuição dos bens da comunidade nacional”. E dado que a dignificação dos «adeptos» deve ser o centro de todo e qualquer plano de crescimento económico e desenvolvimento sustentável, a nossa «selecção» dificilmente sairá da vergonhosa classificação enquanto os responsáveis pelo nosso destino colectivo continuarem a gerir, de forma desastrosa, os nossos abundantes recursos e persistirem em vedar à esmagadora maioria dos «adeptos» de Angola o legítimo acesso a todas as coisas de que necessitam para levarem uma vida verdadeiramente humana.

José Maria Huambo

quinta-feira, 8 de junho de 2006

Os Donos da Bola

Há, entre nós, uma generalizada desilusão motivada pela forma como a oposição política, as principais instituições civis e religiosas, as lideranças sindicais e alguns intelectuais proeminentes se submetem aos jogos, caprichos e desmandos do núcleo duro que detém o poder e domina a sociedade angolana.

Este triste fenómeno fez-me recuar no tempo e rever uma das mais sinistras figuras da minha memorável infância: o dono da bola. Aqueles que, como eu, passaram grande parte da infância a jogar a bola, lembram-se, com certeza, que durante a década de oitenta eram poucos os que tinham um esférico a sério! A maior parte de nós passava longas horas a jogar com bolas de trapos ou de meias. E a imensa criatividade dos miúdos do meu tempo proporcionou-nos o prazer de jogar futebol com bolas de vários tipos e feitios, sendo as mais «sofisticadas», aquelas que o Narciso fazia: envolvia um monte de plásticos em peúgas militares, até formarem um grande esférico. Depois cobria-o com restos de colchão de esponja, para dar-lhe elasticidade. Por fim, envolvia o esférico esponjado num saco plástico, entrelaçando-o com cordas de barbante que lhe dava o aspecto atractivo.

Claro que, enquanto incondicionais amantes do futebol, o nosso ardente desejo e a nossa mais profunda ambição era jogar com um esférico a sério, quer fosse de borracha ou de «catchu». Mas, naquele tempo, as ditas bolas eram um raro bem, apenas ao alcance dos clubes a sério, das equipas dos caçulinhas e dos filhos dos «pequenos burgueses». É neste contexto que os poucos proprietários de um esférico a sério surgiram como figuras marcantes da nossa infância. E de todas essas figuras com as quais me deparei, uma delas destaca-se como paradigma perfeito da confrangedora situação vivida pelas cada vez mais passivas figuras da oposição política, da intelectualidade nacional e das lideranças sindicais, sociais e eclesiásticas.

Por razões pessoais, vou omitir o seu verdadeiro nome e chamar-lhe Jota-Jota. Apesar de ser um bom miúdo, Jota-Jota nunca foi um daqueles jogadores indispensáveis, quer nas equipas da nossa rua, quer nos grupos que actuavam nos pelados das escolas que circundavam o nosso bairro. Na maior parte das vezes, ele só entrava em campo nos dias em que havia pouco pessoal. Mas tudo mudou a seu favor quando uma das tias vinda de Luanda entregou-lhe uma prenda carinhosamente enviada pelo padrinho que vivia em Portugal: uma novinha bola de «catchu» Mikasa e um equipamento completo da Adidas, daqueles com fato olímpico, calções, camisola, meias e chuteiras. Assim, por ser dono da mais cobiçada bola do meu tempo, Jota-Jota passou a ser o miúdo mais adulado e o jogador mais procurado da minha rua.

Cansados de jogar com as «sofisticadas» bolas do Narciso e ansiosos por colocar os nossos pés descalços na bendita Mikasa preta e branca, pressionamos o novo dono a marcar um jogo de estreia. Mas só no dia do desafio nos apercebemos que o Jota-Jota, como qualquer dono da bola que se preze, iria usar a Mikasa como instrumento de poder e de influência. Os caprichos e desmandos que um esférico de «catchu» lhe conferia vieram logo ao de cima na altura do «bota-sapato». Para quem não sabe ou não se lembra, o «bota-sapato» era um «democrático» mecanismo que determinava a escolha das equipas. Dois jogadores ofereciam-se ou eram escolhidos para seleccionarem os elementos das suas equipas. Marcava-se um ponto de referência. Os dois jogadores davam a mão e, partindo desse ponto, recuavam até uma certa distância, a partir da qual começavam a contar os passos em direcção ao ponto de referência. Por cada passo dado um dizia «bota» e outro respondia «sapato». Aquele que alcançasse primeiro o ponto de referência tinha direito à primeira escolha.

Fui escolhido para apadrinhar o primeiro «bota-sapato» do dono da bola. Durante o percurso em direcção ao ponto de referência, Jota-Jota deu dois passos a mais e ganhou o direito à primeira opção. Todos vimos a monumental batota. Mas, levados pela ânsia de jogar com uma bola a sério, acabamos por desculpar a fraude. Jota-Jota, ciente do ascendente que passou a exercer sobre nós, estava decidido a ficar com os melhores em campo. E esta pretensão ficou clara quando anulou as minhas primeiras escolhas que tinham recaído sobre o Nato (Bernardo) e o Enoque, que eram, respectivamente, o melhor guarda-redes e o mais temível avançado do nosso Bairro. Esta situação gerou uma longa discussão que só terminou quando o Jota-Jota decidiu ir para casa. Naquele tempo, levar a respectiva bola era o mais poderoso instrumento de chantagem que os donos gostavam de usar para fazerem vincar os seus desmandos e caprichos. Assim, vergados pela força da chantagem e determinados em não deixar escapar a rara oportunidade de jogar com uma Mikasa, acabamos por acatar a desonesta e arrogante imposição.

Depois dos desentendimentos iniciais, lá começou o jogo que se tornou recheado de controvérsias. A minha equipa marcava um golo. Os batoteiros do outro lado apressavam-se a invalidá-lo. Discussão. É golo... não é... é golo... não é... E lá vinha o Jota-Jota: «vou levar a bola!» E nós: «ta bem, pronto... não foi golo». Um jogador da minha equipa dá um encostão ao adversário na zona do meio campo. Jota-Jota pega na bola e decide assinalar... grande penalidade. Os ânimos exaltam-se. Perante a tenaz resistência dos adversários, o dono da Mikasa decide: «vou levar a bola!» E nós, preferindo engolir a fraude monumental a perder o jogo, lá acabamos por fazer-lhe a vontade: «ta bem, pronto... é penalti».

Apesar da batota dos adversários, chegamos a meio do jogo a ganhar por 6-3. O grande responsável pelo esmagador resultado chamava-se Bato (Bartolomeu). Este miúdo, escolhido a ultima da hora para reforçar a minha desfalcada equipa, revelou-se um grande e habilidoso jogador, um genuíno «brinca na areia» que destronou o temido Enoque e fez o Nato parecer um vulgar guarda-redes. Esse Bato protagonizou um incidente que mudou o curso do jogo.

Naquele tempo, era suprema humilhação um jogador permitir que o adversário conseguisse passar-lhe a bola por entre a s pernas (dar da «ova» ou das «cuecas»), driblar-lhe em sprint (levar na «colola») e fazer passar-lhe a bola por cima da cabeça (dar «cabrito» ou fazer «chapéu»). O habilidoso Bato, que se revelara um mestre da «colola» e que já tinha dado «das cuecas» de todos os adversários, cometeu a imperdoável heresia de dar duplo «cabrito» ao dono da bola. Desolado com a pesada derrota da sua equipa e sentindo-se humilhado pelo Bato, Jota-Jota pegou na preciosa Mikasa e, sem explicações, começou a abandonar o campo. Depois de suplicantes pedidos de desculpas do Bato e de longos minutos de uma autêntica batalha diplomática, lá conseguimos convencê-lo a esquecer o humilhante incidente e a regressar ao campo. Ciente da sua dominante posição, o dono da bola decidiu retomar a partida impondo duas grandes condições: o jogo recomeçava empatado a 6 golos e o Bato passava para equipa dele. De início, insurgimo-nos com veemência e indignação. Mas, depois, cedemos, acabando por tolerar as injustas condições.

É escusado dizer que a minha decapitada equipa sofreu um autêntico «massacre». Mas, o que valeu mesmo e constituiu para nós um supremo prazer foi o facto de aquela bola de «catchu» nos ter dado a possibilidade de encarnarmos os nossos ídolos e explanarmos todo o nosso futebol. E por felizes momentos deixamos de ser nós mesmos e passamos a ser Ndunguidi, Maluka, Sarmento, Jesus, Vata, Napoleão, Chico Diniz, Arsénio, Maradona, Rumenigge, Dasaev, Boniek, Paolo Rossi, Zico, Platini, etc.

Vivemos numa sociedade empobrecida, onde os mecanismos que possibilitam o justo acesso aos chamados «bens socialmente desejados» (habitação, alimentação, educação, saúde, emprego, etc.) continuam concentrados nas mãos do núcleo duro que detém o poder e domina a sociedade angolana. Assim, e cansados de jogar com as «sofisticadas» «bolas de trapos» que dispomos no quotidiano jogo pela sobrevivência, temos sido forçados a recorrer aos nossos «Jota-Jotas» para usufruirmos dos preciosos bens capazes de tornar menos pesado o duro fardo da vida.

E, para continuarmos a desfrutar de um «esférico» a sério, já sabemos o que não se deve fazer aos poderosos donos da bola: dar «cabrito» ao Presidente, nem pensar! E os «Batos» que ousaram fazê-lo, sofreram as devidas consequências. Os atrevidos que tentarem Levar na «colola» os Altos Dirigentes já sabem que correm o risco de levar um «carrinho» mortal ou uma daquelas entradas duras capazes de deixá-los gravemente lesionados. Dar das «cuecas» do «Governo» pode desencadear a perda da casa, do carro, dos dólares, das bolsas de estudo, da junta médica, dos subsídios do partido, dos negócios, dos privilégios e de outras regalias.

E, assim, no quotidiano jogo da realização pessoal e da sobrevivência socio-política, contestar os nossos «Jota-Jotas» transformou-se num risco que poucos se atrevem a correr. E usufruir das «bolas de catchu» proporcionadas pelo poderoso sistema transformou-se num deleitante prazer que ninguém deseja abdicar. Por isso, entre nós, tornou-se preferível suportar os caprichos e desmandos dos donos das preciosas «Mikasas» a jogar honestamente com as «bolas de trapos» da nossa empobrecida sociedade.

José Maria Huambo