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quarta-feira, 18 de junho de 2008

O Estranho Milagre de Abril

Há décadas que a nossa problemática sociedade é assolada por impressionantes e estranhos fenómenos. E nestes últimos anos de Paz, um deles se impôs como a mais recente novidade: o súbito e misterioso desaparecimento dos mais graves problemas que infestavam a nossa sociedade.

Até um pouco antes de 4 de Abril de 2002 estávamos no isolado grupo que liderava o «campeonato» mundial da corrupção. Tínhamos os piores índices de analfabetismo, de mortalidade materno-infantil, de esperança de vida e de acesso ao saneamento básico. Mais de 80% dos angolanos vivia sob um deplorável índice de privação humana. Os salários eram miseráveis e o desemprego atingia mais de 55% da força activa. Milhares de jovens traumatizados e sem projectos de vida vegetavam nos grandes centros urbanos. Os homens tinham 32,9% de probabilidade de, à nascença, ultrapassarem os 65 anos e as mulheres 38,1%. Enfim, pouco antes do efusivo abraço dos desavindos éramos, ainda, cotados como um dos mais problemáticos países do mundo. Dizia-se, mesmo, que Angola era um dos piores sítios para uma criança nascer e um adulto viver com dignidade.

Mas, de repente, como que por obra de um poderoso feitiço lançado sobre nós em Abril de 2002, todos esses problemas que nos afectavam desapareceram, subitamente, deixando de ser temas dos grandes debates e de constar no conteúdo das análises dos influentes sectores da opinião pública nacional e internacional. E por força desse estranho fenómeno, dissertar sobre as causas do nosso definhamento colectivo e evocar os males que têm emperrado um dos mais promissores países do mundo tornou-se uma velha paranóia de alguns «reaccionários» hostis ao «nosso esforçado governo» e de algumas forças ocultas que teimam em não querer que Angola avance.

Agora, a paz tornou-se, entre nós, irreversível e absolutamente consolidada. Estamos definitivamente reconciliados, cada vez mais unidos e prontos a trilhar os caminhos do progresso e do bem-estar social. O «governo» está a trabalhar melhor do que nunca. Os governantes estão cada vez mais responsáveis. Cimentamos a nossa posição de potência e peça importante na geopolítica africana. Ocupamos um lugar cimeiro nos palcos das grandes decisões internacionais. Afirmamo-nos cada vez mais na região Austral e estamos à altura de criar condições para o crescimento e desenvolvimento sustentável na região.

E, para atestar ao mundo a veracidade do excepcional momento vivido pelos angolanos, os ilustres estrangeiros que, oficial ou particularmente, nos visitam não se têm mostrado «forretas» nos elogios: a democracia em Angola é um dado consolidado. O governo angolano está cada vez mais transparente na gestão dos fundos e mais credível nas grandes instituições internacionais. A situação dos direitos humanos melhorou de forma significativa. Angola é o País que mais está crescer em todo o mundo e dentro de poucos anos será o Estado mais próspero de África!

A difícil procura de factos que nos ajudassem a compreender as razões e as motivações que sustentam o súbito e estranho desaparecimento dos graves problemas da nossa sociedade levou-me a viajar no tempo e rever um dos mais bizarros comportamentos da minha memorável infância.

Quando éramos miúdos púnhamos as nossas aprazíveis brincadeiras acima de quaisquer outros aspectos considerados importantes da nossa vida em sociedade. Aliás, é hoje ponto assente e unânime considerar a brincadeira como um dos aspectos fundamentais do desenvolvimento da criança. Mas os nossos zelosos encarregados de educação não entendiam assim. Por isso, desde cedo, queriam fazer-nos «maduros» e «responsáveis», obrigando-nos a eleger os estudos e as lides domésticas como prioridades absolutas.

Não era, por isso, de estranhar que tivéssemos desenvolvido fortes resistências aos trabalhos domésticos. Assim, mal vínhamos da escola, partíamos logo para a gostosa diversão. E durante as férias chegávamos a desaparecer o dia inteiro.

Só que os «inimigos» da brincadeira não dormiam em serviço, estando sempre atentos às nossas minuciosas manobras. Assim, mal se apercebiam da nossa fuga aos sagrados deveres, procuravam agir de imediato. E o pior de tudo é que era sempre no auge da brincadeira que os zelosos encarregados de educação gostavam de nos chamar ou ir buscar para arrumar e limpar a casa, lavar a loiça, varrer o pátio, etc., etc. E perante a inevitabilidade do autoritário apelo, os mais temerosos abandonavam a brincadeira voluntariamente contrariados. Para os mais duros, abandonar a diversão era um acto tão difícil que só saíam dela sob dolorosas séries de «cocos» na cabeça ou forçosamente arrastados pelos impulsos dos puxões de orelhas.

Por tudo isso, era óbvio que chegássemos à casa sem a mínima motivação para cumprir os sagrados deveres impostos pelos «inimigos» da brincadeira. E não era, por isso, de estranhar que, no momento de executar as lides domésticas, e no claro intuito de apenas satisfazer as caprichosas exigências dos zelosos encarregados de educação e para, rapidamente, podermos voltar à diversão, fizéssemos tudo mal e às pressas. Assim, ao arrumarmos a casa, muito lixo era atirado para debaixo dos tapetes e das camas ou deixado atrás das portas. Só limpávamos o pó dos objectos absolutamente visíveis. Apenas passávamos o pano do chão nas superfícies mais usadas. E ao varrer o quintal ou o passeio, o mais pequeno buraco ou arbusto servia para esconder o lixo.

Pois é, meus caros! As razões e as motivações que sustentam o súbito e estranho desaparecimento dos graves problemas da nossa sociedade não diferem muito das peripécias narradas por este incrível episódio da minha memorável infância. E tanto as bizarras condutas da esmagadora maioria dos altos responsáveis da nação como as intragáveis opiniões de alguns influentes círculos da opinião pública nacional têm provado, de forma eloquente, que, pelos vistos, não perdemos os velhos hábitos infantis. Ainda continuamos a colocar a brincadeira acima de quaisquer outros aspectos importantes da nossa vida em sociedade. Adoramos brincar aos «bons governantes», aos «patriotas exaltados», aos «cidadãos orgulhosos» aos «grandes países», etc.

E no decurso de três décadas de absoluta diversão desenvolvemos o vergonhoso hábito de instituir «bodes expiatórios» e inventamos sofisticadas formas de evitar o confronto directo com as puras razões do nosso definhamento colectivo. Assim, fácil e confortavelmente, passamos a atribuir as causas da dura realidade angolana a «estranhos factores», tais como «o colonialismo que cultivou o obscurantismo e a exploração do homem pelo homem»; «o imperialismo e seus lacaios»; «a cobiça de alguns países»; «os bandos de fantoches armados»; «a ingerência de alguns estados no assuntos internos de Angola»; «o regime comunista instaurado em Angola»; «a arrogância dos caudilhos»; «o regime totalitário de Luanda»; «o neocolonialismo russo-cubano»; «os profundos interesses das grandes potências mundiais», etc., etc.

Quando nos chamam para «arrumar» e «limpar» a nossa problemática sociedade ou para organizar o nosso dilacerado país comportamo-nos como crianças contrariadas por deixarem a gostosa brincadeira. Assim, e no claro intuito de apenas satisfazer as exigências da chamada «comunidade internacional», temos feito tudo mal às pressas. Em vez de «varrermos», «recolhermos» e «deitarmos fora» os males que têm emperrado o nosso promissor país, limitamo-nos a atirar o abundante «lixo» da nossa conturbada sociedade para debaixo do grande «tapete» da guerra. E o fim do cruel conflito pouco ou nada veio alterar a nossa «porquice». Porque os graves problemas continuam, agora, escondidos sob o vistoso «tapete» da tão propalada Paz. Os velhos problemas do povo estão cheíssimos de pó. Os «panos do chão» que usamos há mais de 30 anos não têm sido capazes de «limpar» as graves desordens que «mancham» a nossa sociedade.

José Maria Huambo

1 comentário:

Anónimo disse...

Mais um excelente artigo!

Outra desculpa que muito gostamos de dar é "não falo de política", "são politiquices", "não quero falar de política".

Essa desculpa é um misto de comodismo (reprovável), laxismo (reprovável) e de medo (compreensível).

Quando uma cidadão não quer falar de política por comodismo e laxismo só faz com que a situação em Angola continue como está. Falar mal todo o mundo pode fazer, mas sem acção política nada se resolve.

Há quem defenda que a política está "porca e podre" e que nada quer ter que ver com ela. Mais uma prova de laxismo e comodismo; política e políticos são duas coisas diferentes!

Saber a definição de política também ajuda, assim convido-os a pegar num dicionário e a procurarem a definição de política. A seguir, olhem para a Frente para a Democracia, FpD.