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terça-feira, 8 de julho de 2008

Competência e Direitos Humanos

Na Índia, os praticantes do hinduísmo, uma das maiores religiões do mundo, consideram as vacas como animais sagrados. Segundo a tradição, foi uma vaca que alimentou Krishna, um dos mais importantes deuses hindus. Por isso, todos veneram as suas vacas e ninguém pode fazer-lhes mal. Assim, os animais têm toda a liberdade de circulação nas vilas e nas cidades, podem fazer o que quiserem e destruírem o que bem lhes apetece. Os hindus podem viver na extrema pobreza, mas orgulham-se de exibirem as suas manadas como sinal de riqueza e prosperidade. Podem estar a morrer de fome, mas não são capazes de matar uma vaca e aproveitar a carne. Quem se atrever a mexer numa delas corre risco de morte.

Há, entre nós, uma muito enraizada mentalidade de «vacas sagradas». Assim, muitos se julgam sagrados e querem manter-se no poder a qualquer preço, apesar de terem dado intermináveis provas de serem dirigentes altamente incompetentes na condução do nosso destino colectivo e na gestão dos nossos recursos humanos e naturais. Muitos brancos e mulatos se julgam sagrados e destinados a manterem os seus privilégios por descenderem de uma raça superior. Muitos negros se julgam sagrados e destinados a dominarem o País por só saberem falar português, por descenderem de famílias nobres e por terem nascido em Luanda.

Aliás, o longo e cruel conflito angolano não foi mais do que o reflexo político-militar dos antagonismos socioculturais e etnorregionais que enfermam a sociedade angolana e resultou do virulento embate entre dois grupos de sagrados que pretendiam impor, por todos os meios, a hegemonia política. Assim, os do MPLA consideravam-se muito sagrados e, por isso, podiam fazer de nós o que quisessem por se acharem os mais «civilizados», o mais «capazes» e os mais «evoluídos» dos angolanos. Os da UNITA julgavam-se super sagrados e, por isso, podiam fazer de nós o que quisessem por se acharem os mais «genuínos» dos angolanos, as verdadeiras vítimas do colonialismo português e «legítimos» representantes da maioria negra.

Já perdemos muito tempo com estas vaidosas discussões e com estas lutas sagradas que os nossos Kotas mantiveram acesas durante longos e dolorosos anos. Por isso, urge libertarmo-nos desta discussão de saber quem são os mais sagrados e mudar a forma como encaramos os problemas do País e avaliamos os nossos governantes.

Assim, para a nossa geração, o que deve contar na avaliação do desempenho de todos os nossos líderes (políticos, religiosos, económicos, administrativos, cívicos e tradicionais) são os critérios da competência e dos direitos humanos. Por isso, só os líderes que se mostrarem competentes no cumprimento das suas obrigações e dedicarem tudo o que sabem na promoção dos direitos humanos merecem manterem-se no poder e serem idolatrados e respeitados pelos seus compatriotas.

Uma pessoa é competente e cumpre, eficientemente, as suas obrigações quando dá provas de possuir a habilidade, o conhecimento e a experiência necessárias na planificação de uma acção, na organização de um trabalho e na liderança e na motivação daqueles que estão sob sua responsabilidade.

Portanto, não basta os nossos líderes circularem em carros luxuosos, vestirem trajes caros, falarem correctamente o português, gabarem-se de serem os mais urbanos e os mais civilizados para merecerem o respeito e admiração dos seus compatriotas. Isto porque, a competência pouco tem a ver com estes complexos e preconceitos. Foi essa a lição que Mutu Ya Kevela deu ao exército colonial.

Entre os meses de Março e Agosto de 1902, nos territórios do reino do Bailundo, os indígenas revoltaram-se contra os comerciantes portugueses que operavam na zona. O Rei Kalandula tinha acabado de morrer e Mutu Ya Kevela, um dos seus conselheiros mais influentes, assumiu a liderança da rebelião e reuniu um grande exército. As colunas militares portuguesas, que foram chamadas para travar a rebelião dos selvagens e proteger os comerciantes, tiveram muita dificuldade em alcançar o Bailundo. Este atraso deveu-se à notável competência de Mutu Ya Kevela. Ele, que era considerado estúpido e selvagem, conseguiu elaborar um plano estratégico para cortar as linhas de avanço das tropas coloniais em 3 frentes: Bié-Caconda, Bailundo- Leste e Bailundo-Benguela. Esta estratégia, que tornou difícil o avanço das tropas coloniais, mereceu o elogio do então Governador-Geral de Angola, Cabral de Moncada. Na opinião do Governador «um plano daqueles só poderia ter sido amadurecido na cabeça de um General experiente e não em cérebros selvagens».

Não basta alguém considerar-se descendente da raça superior ou julgar-se o mais evoluído dos negros para ser considerado, naturalmente, competente e merecer o respeito e a admiração dos seus compatriotas. Isto porque, a competência pouco tem a ver com a superioridade da raça, com a pureza da pele ou com a aparência física. Foi esta a lição que a história deu ao General português Kaúzla de Arriaga e aos seus seguidores.

O General Kaúlza de Arriaga (1915-2004) era um racista assumido. Entre 1964 e 1968 foi professor no Instituto de Altos Estudos Militares. Durante o tempo que lá esteve ensinou, por exemplo, que os negros são pouco evoluídos porque a inteligência das raças diminui a medida que se percorre a chamada escala da latitude, no sentido Norte-Sul. Assim, primeiro vêm os nórdicos, depois os latinos, em seguida os árabes e, por fim, os negros.

Em 1969 o General assumiu o Comando Militar de Moçambique. Em 1970, Absolutamente convencido da superioridade racial e militar do exército português, apressou-se a promover uma super operação militar para, em poucos dias, acabar com a aventura dos indígenas subversivos e aniquilar a FRELIMO, assaltando e destruindo as suas bases. Chamou-lhe «Operação Nó Górdio». Considerada a maior e a mais dispendiosa operação de sempre, envolveu tropas do Exército, Marinha e Força Aérea, num total aproximado de 8.200 homens.

Apesar da clara desvantagem de homens e de meios, os guerrilheiros da FRELIMO foram muito competentes na forma como resistiram à poderosa ofensiva e ludibriaram o exército português. Por causa disso, o cerco às suas bases demorou muito mais do que o previsto e o General Kaúlza de Arriaga não conseguiu atingir o seu objectivo: aniquilar a FRELIMO e acabar com a guerrilha, em poucos dias. Assim, a «Operação Nó Górdio» entrou para os anais da História militar portuguesa como um grave erro estratégico e como um mau exemplo de desperdício de vidas e de meios.

Não basta os nossos líderes julgarem-se, naturalmente, competentes e exigirem respeito e admiração dos seus compatriotas só por terem estudado nos Liceus da Angola colonial, por terem frequentado grandes universidades e exibirem muitos títulos académicos. Isto porque a competência pouco tem a ver com as habilitações académicas de uma pessoa. Foi essa a lição que nos deu o saudoso Valentim Amós, o mais bem sucedido empresário angolano e tragicamente desaparecido em Janeiro de 2008, quando o avião em que viajava com mais 12 pessoas embateu contra uma montanha.

Valentim Amós (1961-2008) tinha poucas habilitações literárias. Não tinha nenhum mestrado ou doutoramento. Não cursou Economia na Universidade de Harvard (EUA) ou Gestão na Universidade de Oxford (Inglaterra). Mas era uma pessoa altamente competente e mostrou-se incansável na promoção dos direitos humanos. Graças a sua comprovada competência, construiu um império comercial avaliado em mil milhões de dólares. E por se ter dedicado à promoção dos direitos humanos, ele é hoje um líder muito chorado, idolatrado e respeitado.

José Maria Huambo

2 comentários:

Anónimo disse...

Os textos custumam ser bons, mas desta vez algumas falhas. Se pretendia o articulista falar da capacidade em termos de direitos humanos porque não focou audazes lutadores pelos direitos humanos em Angola e deu os seus exemplos vivos (e outros mortos)? Jornalistas, médicos, políticos, religiosos, professores, etc,etc. Esses heróis existem! Porque pecou em defender os direitos humanos com as obras de um passado muito antigo e ainda em exemplo das armas?

Quando a Valentim Amós, faz alguma confusao como é que alguem junta tanto dinheiro num país carregado de corrupação? Ou aceitou navegar em aguas de corrupção ou fez algma magia que me escapa. A verdade é que quer a Unita quer o Mpla tudo fazem para fazer dele um heroi.

Num pais com tanta miseria, aprecio mais os herois que nao o sao pela riqueza mas sim pela pobreza e trabalho nos direitos humanos, liberdade de imprensa, direito a casa, direito a educacao, direito a saude.

Nao descanbe no facilitismo que custuma começa a apanhar muitos que escrevem bem na banda e sobre a banda.

Rui Amado disse...

Angola carece de descobrir o seu rumo para o desenvolvimento. Cair no erro de se deslumbrar com o modelo dos países do Golfo, da China ou dos Estados Unidos, não vai promover o desenvolvimento civilizacional da população angolana.
Países como a Noruega, Suíça e Finlândia, podem e devem ser objecto de análise para extracção e adaptação das soluções que adoptaram.Em comum o facto de terem apostado no bem estar dos seus cidadãos assegurando-lhes os mais elevados níveis de rendimento e de vida mundiais (remunerações e prestações sociais - saúde, educação, habitação, justiça, segurança, participação cívica), sem descurar as obrigações de promover cooperação com países em vias de desenvolvimento.Enquanto a preocupação dos governantes de Angola for a mera recuperação física das infra-estruturas do país e a mera satisfação das necessidades materiais básicas da população não haverá o merecido salto civilizacional dos Angolanos. Utilizar como argumento das capacidades de um povo as capacidades guerreiras do mesmo não é grande argumento. De Roma ficaram as instituições jurídicas, os modelos de organização de estado, o conceito de cidadania, a capacidade de integração dos elementos culturais de povos mais evoluidos (a civilização é Greco-Romana e não o inverso), os príncipios básicos da organização política do estado. O império romano do Ocidente foi destruído por povos como os Vândalos, Godos, Ostrogodos, etc., Povos de grandes guerreiros...