DANIEL CHIPENDA
“Se queremos progredir, não devemos repetir a história, mas fazer uma história nova”.
MAHATMA GANDHI
Mais do que em qualquer outra época da nossa conturbada história, o tempo que corre oferece-nos a suprema oportunidade de lançarmos os alicerces de um projecto político e socioeconómico que, finalmente, nos torne capazes de construir um país e consolidar um Estado.
Mas apesar desta excelente ocasião, continuamos a persistir nos erros que originaram a devastação e estagnação da nossa amada Pátria. Teimamos em manter intactos os vícios que exploram e manipulam as nossas naturais diferenças e obstam a convivência fraterna entre todos os angolanos.
O musculado triunfo do tristemente célebre projecto constitucional do grupo de Eduardo dos Santos é apenas mais um desses erros e vícios, sucessivamente, repetidos ao longo da nossa conturbada história. Assim, ao impingirem uma Lei Fundamental absolutamente controversa e longamente contestada, os arquitectos da vergonhosa Constituição deitaram, levianamente, por terra a grande oportunidade de «inventarmos», juntos, um modelo de Estado que vise assegurar a coesão de um mosaico de raças, línguas, etnias, regiões e culturas tão heterogéneas, para que ninguém se sinta submetido, excluído ou humilhado, devendo caminhar a reboque de grupos ou povos dominantes.
Assim, em nome de uma autêntica e eterna reconciliação dos angolanos e para que todo o longo e controverso processo culminado no dia 4 de Abril de 2002 não se transforme num empreendimento inglório e num insensato desperdício de vidas e energias, precisamos de um projecto constitucional que parta das seguintes premissas:
Primeira Premissa: Somos um país plurirracial e multinacional ou multiétnico. Assim, por mais que a propaganda insista no «um só povo e uma só nação», o facto é que a nossa sociedade abarca uma diversidade racial, étnica, cultural, social e até religiosa. Por isso, haverá sempre entre os angolanos grandes diferenças na forma de ser, estar, pensar, sentir, agir, viver e conviver.
Por exemplo: os urbanos sempre distinguiram-se do tipo de vida, do ambiente e da mentalidade dos rurais. A fronteira entre «nós» e «eles» estará sempre enraizada nas consciências dos negros, dos mestiços e dos brancos do nosso país. A forma como um Ganguela encara a problemática da morte é muito diferente da de um Kimbundo. São dissemelhantes os conceitos de família e de riqueza entre um Ovimbundo e um Mucubal. São distintas as concepções jurídico-morais de um Cuanhama e de um Kicongo. Os rituais em torno do nascimento e do casamento são vividos de formas diferentes entre um Nhaneca e um Kioco. Os negros, mestiços e brancos nados e criados em cada uma das regiões angolanas serão sempre distintos uns dos outros. Isto porque, e como bem asseverou Ferreira Deusdado:“O indivíduo é sempre, mais ou menos, da sua província, da sua cidade, ou da sua aldeia e conserva a pronúncia, o espírito, o carácter e os hábitos adquiridos nas condições mesológicas em que se desenvolveu. Cada um de nós deve à sua terra um conjunto de traços, um tipo de organização, de aptidões especiais, de pensar, de conceber e de exprimir a beleza, um fundo tradicional de costumes e até uma linguagem especial”.
Portanto, há, entre nós, uma clara diferenciação entre os rurais e os urbanos. Uma perfeita consciência identitária em cada um dos grupos raciais e uma sólida consciência étnica em cada uma das nações angolanas. Tornam-se, assim, inevitáveis as clivagens raciais e os antagonismos etnossociais. Porque todos sabem que pertencem a um grupo (racial, étnico, político e sociocultural). Essa noção de grupo e de pertença a ele, quando relacionados com a percepção de diferenças em relação a outros grupos, podem ter uma conotação de valor positivo ou negativo. E essa noção de grupo e de pertença podem ser acompanhados de emoções, tais como amor ou ódio, gostar ou não gostar, dirigida a um grupo próprio e para outros com os quais têm certas relações
Mas fazer tábua rasa ao direito à diferença; igualizar os angolanos pela obrigatória submissão e prestação de vassalagem a grupos hegemónicos e intolerantes; construir a unidade dos filhos de Angola a partir da unicidade (racial, étnica, política e sociocultural), tem sido uma onerosa opção e uma trágica conduta sucessivamente repetidas por colonizadores, nacionalistas, descolonizadores, libertadores, defensores do «Povo angolano» e da «Angola profunda», por mediadores, observadores, pacificadores e por «especialistas» em assuntos angolanos. Infelizmente, o projecto constitucional do grupo de Eduardo dos Santos prepara-se para navegar no mesmo erro.
Segunda Premissa: A «Angola independente e africana» não existe. É uma miragem juridico-política, uma ficção geográfica e uma falência sócio-económica. Aquilo a que vulgou-se chamar «República de Angola» não passa de grandiosas ruínas do projecto arquitectado e edificado pela e para a comunidade branca da Angola colonial. Durante as três décadas da nossa pretensa independência não fomos capazes de construir um país e consolidar um Estado. Antes pelo contrário, limitamo-nos a destruir e a degradar de forma insensata tudo aquilo que os colonos ergueram: pessoas; estruturas económicas, administrativas e financeiras; cidades e vilas; estradas; pontes; etc. Não se pode, por isso, falar de «reconstrução» de um país que nunca foi edificado.
Mais. Os nativos nunca formaram uma nação unificada e homogénea como os colonizadores e estão longe de possuir uma sólida consciência nacional. Não se pode, por isso, falar de «reconciliação» de um povo que nunca esteve conciliado. O próprio colonialismo não fez brotar dos angolanos a consciência nacional, porque apesar da administração portuguesa ter congregado negros, brancos e mestiços bem como os diferentes grupos étnicos num mesmo espaço territorial, nem todos partilhavam do sentimento de pertença à nação portuguesa e nem todos os africanos usufruíam das benesses da portugalidade.
A «independência» não foi capaz de conciliar os diferentes grupos raciais, étnicos, políticos e socioculturais em torno do lindo, digno e promissor projecto anelado por todos e arquitectado pelos nacionalistas que, independentemente da sua cor da pele, etnia ou região, pretendiam fazer de Angola uma pátria livre, igualitária e próspera. Antes pelo contrário, a pretensa «independência» agudizou as diferenças étnicas e raciais, acentuou as desigualdades socioeconómicas e avivou os antagonismos etnossociais de tal forma que, tal como antes da presença colonial, continuamos inconciliados, estranhos uns aos outros e, pior, hostilizamo-nos de tal forma que Angola tornou-se num hediondo palco de uma infame «cadeia alimentar», onde as cruéis disputas entre «presas» e «predadores» superam, de longe, os melhores documentários sobre a vida selvagem produzidos pela conceituada BBC:
Os «civilizados» desprezam os «gentios». Os ditos «genuínos» hostilizam os «crioulos». Os negristas acharam que os brancos e mulatos não podiam ser angolanos. Os racistas nunca conceberam uma Angola com «pretos». Os «cafusistas» acham que os angolanos de pele clara têm primazia sobre os de pele escura. Alguns angolenses advogam que Angola é Luanda e o resto é paisagem. Outros acham que os kimbundos são os mais «evoluidos» e estão acima dos outros nativos. Os ditos «puros mangolês» hostilizam os bakongos, a quem apelidam de «zairenses». Os Cabindas não querem nada com os «angolanos». Os rurais não vêem as vantagens da angolanidade e continuam a espera da «independência». Os do Cunene acham que, enquanto angolanos, muito têm perdido. Os chamados «das províncias» acham-se marginalizados como angolanos. Os do MPLA mataram angolanos em nome de todos os angolanos. Os da UNITA chacinaram angolanos em nome da «Angola profunda». Muitos já não querem ser angolanos. Enfim, é o caos total na infame «selva angolana».
Assim, em nome de uma autêntica conciliação dos angolanos torna-se imperioso diagnosticar as verdadeiras causas do naufrágio de Angola e identificar os males que exploram e manipulam as nossas naturais diferenças e obstam a convivência fraterna entre todos os angolanos. Enfim, e parafraseando D. Manuel Vieira Pinto, urge examinar à luz da verdade a situação em que se encontra o nosso país. Examinar o que é bom para assumir e potenciar, examinar o que é mau para o abandonar e destruir.
Terceira Premissa: Cumpridos os dois primeiros passos, torna-se imprescindível que todas as forças vivas da sociedade angolana participem na definição do novo rumo de Angola e na materialização das ingentes tarefas de uma Pátria profundamente devastada e de uma sociedade tão problemática como a nossa. O país não pode continuar a ser propriedade exclusiva de alguns grupos hegemónicos e intolerantes. “Angola deverá ser a pátria benévola de todos os seus filhos e não apenas de minorias intolerantes que se comportem como donas dos destinos da nossa terra e do nosso povo”, como bem diziam, em 1960, Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade num manifesto que denominaram «Segundo Apelo à Unidade».
Torna-se, assim, imperiosa a «invenção» de um modelo de Estado que vise assegurar a coesão de um mosaico de raças, línguas, etnias e culturas tão heterogéneas, para que ninguém se sinta submetido, excluído ou humilhado. Enfim, é necessário que se discuta e se repense o país que pretendemos construir. É imperioso que se arquitecte um projecto constitucional que seja capaz de unir e conciliar os angolanos, corrigir as profundas desigualdades socioeconómicas, tornar menos sensíveis e menos virulentas as inevitáveis conflitualidades e expurgar os infames fermentos da guerra.
E acredito profundamente que só uma «Constituição Reconciliadora» contribuirá para conciliar os angolanos, construir um grande país, edificar a desejável paz duradoura e evitar o germinar contínuo e insufocável de revoltas e rebeliões.
José Maria Huambo